Aquela era uma altura em que as coisas já não andavam grande coisa; aquela fase em que as relações chegam a um ponto onde não há retorno possível – a barreira que nos separa do ódio, do desrespeito, da falta de consideração pelo outro, que jamais deve ser ultrapassada ou posta em causa -, e o descontrolo apodera-se dos corações fracos e estilhaçados pela força das palavras, cruas e velhacas, que nos sugam energia, nos desgastam, nos saturam, nos impedem, tantas vezes, de alcançarmos aqueles momentos plenos de felicidade. Era uma altura complicada: todos o sabiam. E nesses instantes em que “la carne es débil” (como diriam os espanhóis para dizer que “a carne é fraca”) o proibido revela-se algo tão, mas tão, sumamente, apetecível que até dói, dói de tão pecaminoso que é.
Era assim que Laura se sentia, dorida por todas aquelas tentações às quais tentava resistir; dorida por tanto se esforçar para não cometer loucuras, por saber que não era correcto, não era suposto, não era sincero. Filha da mãe, a sinceridade! Porque será que era tudo tão difícil, não poderia, simplesmente, desistir, ser animal, ser vulcão em erupção?
Há meses que Rui, o melhor amigo de Filipe, se encontrava, às escondidas, com Laura. Nada de mal tinha acontecido, apenas a simples acção de ambos se encontrarem, nas costas de Rui, já supunha uma espécie de traição sem, na verdade, o ser. Era evidente, embora não o admitissem, que o facto de “esconder” um mero encontro é logo interpretado com segundas intenções, desejos ocultos de um fruto proibido. Estão a ver a clássica frase de quem mente e engana, ao mesmo tempo, e acredita piamente na sua inocência?
“Eu estava a sofrer muito por tua causa e não queria…”
Certa tarde, Rui decidiu passar lá por casa, o inesperado mais esperado aconteceu. Laura estava decidida a acabar com toda aquela mentira, pesava-lhe a consciência, não aguentava mais viver duas vidas, paralelamente: estava na hora de decidir. Filipe, devastado por sentir que o seu casamento estava arruinado, estaria fora de casa, naquela noite, por motivos laborais, mas decidiu fazer uma surpresa a Laura, recuperar a mulher da sua vida. Entrara em casa, de flores na mão, sorrateiro, e o mundo caiu-lhe em cima: o seu melhor amigo a forçar um beijo com a sua mulher. Ela resistiu ainda mais, quase num grito desesperado, ao aperceber-se da presença do marido mas os lábios dele tocaram nos dela. Fora o fim, a consumação da traição estava feita, ali, no lar onde construíra uma vida ao lado dela.
Filipe, cego e descontrolado, foi direito à mesa-de-cabeceira, puxou da pistola que tinha, guardada e carregada, e PAM, PAM. Dois tiros à queima roupa, entre gritos de socorro e misericórdia, em cheio no companheiro e amigo mais leal de sempre de Laura: Tobias, um rafeiro que encontrara na rua 12 anos antes.