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O despedimento

  • Sofia fazes-me um favor?
  • Sim claro! – respondeu sem hesitar
  • Fazes-me fotocópias destes documentos? Ah! E já agora leva-me oito cafés ali à sala de reuniões!
  • Está bem…
  • E não te esqueças de os trazer quentes! Da outra vez estavam intragáveis.
  • Sim, senhor.

Levantou-se da secretária e sentiu como os olhos do seu detestável chefe fixavam sem qualquer discrição o seu rabo e toda a silhueta do seu corpo. De alto a baixo. Sentia-se um nojo. Quase violada. Contudo nada podia fazer às contínuas insinuações e indiretas que ele lhe mandava, os favores que lhe pedia e que a faziam sentir completamente inútil. Uma boneca sem cabeça nenhuma e inteligência zero. Ao inicio pensava que a tinham contratado pelas suas capacidades, a sua formação e a sua personalidade mas, há cinco meses que tinha percebido que a sua cara bonita e aquelas pernas longas e compridas como as de uma autêntica modelo tinham influenciado a seleção, o que a fazia sentir ainda pior.

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Mesmo assim tinha mais com que se preocupar. O importante é que lhe chegava para pagar as contas embora tivesse que aturar e evitar o assédio por parte do seu supervisor que não passava simplesmente de um monte de esterco mal-cheiroso cheio de moscas e mosquitos à volta que o rondavam e não o largavam.

Às vezes tinha pensamentos bastante preocupantes no que diz respeito à sua relação com ele. Dava por si a imaginar como seria se um dia “tropeçasse sem querer” e a meio de uma reunião despejasse os oito, nove ou dez cafés quentes em cima dele. Ou então se se “esquecesse” de marcar todas as reuniões, os eventos e de organizar a sua agenda pessoal trocando-lhe todas as marcações. Sofia sorria enquanto se deleitava com os seus filmes mentais que às vezes estava a tão pouco de por em prática. Eram planos infalíveis, álibis fantásticos que nunca a incriminavam.

– Querida, podes vir só dez minutos ao meu escritório para falarmos os dois?

-Não. – respondeu Sofia.

– Não? Que tom é esse? O que se passa? – disse surpreendido.

– O que se passa é que homens como você não passam de uns insatisfeitos em casa, uns infelizes que nunca souberam dar valor aquilo que têm no final do dia quando voltam para casa e limitam-se a fazer sentir raparigas jovens e bonitas como eu uma autêntica miséria porque simplesmente não têm respeito nenhum, não se olham ao espelho e compreendem de uma vez por todas que são velhos, gastos e caducados com idade para ter juízo em vez de se meterem com miúdas de vinte anos como eu que têm idade para serem vossas filhas, que estão a viver a experiência do primeiro emprego depois da faculdade e provavelmente ficarão marcadas e traumatizadas pelas constantes perseguições e provocações de que são alvo. Você e a sua arrogância, pouca vergonha e prepotência é o que se passa.

O silêncio instalou-se na sala.

Toda a gente tinha ouvido.

Dois dias depois, ele, despediu-se.

Vale sempre a pena

Por volta das sete e meia da manhã, de caminho para o trabalho, o meu Volkswagen polo que tanta viagens fez começou a engasgar-se na horrorosa subida da Calçada de Carriche em direção a Lisboa. Rezava e pedia a todos os santinhos que me ouvissem naquele momento que ele não morresse em plena subida pois se não me deixasse ficar mal iria compensá-lo com uma verdadeira ida ao mecânico. Baixei o volume da rádio, acelerei a fundo e….ele andou. Graças ao seu grande motor de ’96 e a todos os santinhos que me ouviram naquela manhã. Não era o melhor dia para que o carro sofresse uma avaria.

Depois de sair de casa, sem me despedir dele, ouvia a M80. Era tudo uma espécie de rotina que se cumpria quase automaticamente, sem qualquer esforço. Como sempre, havia trânsito que nunca mais acabava e, mais uma vez, iria chegar tarde ao trabalho.

Foi então que passou na rádio aquela música que eu tanto adoro dos Eagles, “Hotel California”. Há anos que não ouvia essa música. Fez-me lembrar da passagem do ano em que nos conhecemos num bar perdido perto da Bica, no meio do caos da multidão. Foi aí quando tudo começou.

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A canção tinha sido pedida por um daqueles ouvintes que telefonam de vez em quando para a rádio porque querem fazer uma dedicatória a alguém. Neste caso, era a pessoa que o ouvinte amava muito e que naquele momento ía para o trabalho e de certeza que o estava a ouvir.

“Só a mim é que não me acontecem destas coisas” – pensei cá para comigo.

“Talvez ele nem saiba que estava a dar esta canção quando nos conhecemos”.

Dez para as oito, e continuava parada no trânsito, estava muito atrasada e ao ouvir aquela música só pensava nele. Por volta daquela hora já estaria a tomar o café no sitio do costume para depois também ir trabalhar.

 “Com sorte daqui a cinco minutos já está a conduzir e a ouvir a rádio” – pensei.

Foi então que me enchi de coragem, liguei para a rádio e dediquei-lhe a sua canção preferida “I wish you’re here” dos Pink Floyd e, até meio encavacada, disse tudo o que sentia como já não o fazia há imenso tempo.

Por um motivo ou por outro tinha-me distanciado dele. Já nem falávamos sobre como tinha corrido o dia, nem éramos carinhosos um com o outro. Tinha saudades daqueles tempos em que tudo era perfeito. Não tinha a certeza se iria a tempo ou se seria tarde demais. Talvez o problema fosse que ele já não me amava mais.

Cheguei ao trabalho numa espécie de transe, já que depois de fazer aquilo me vieram mil e uma coisas à cabeça. O meu chefe refilava comigo e tudo aquilo me entrava a cem e me saía a duzentos. Não conseguia parar de pensar no que tinha feito. Talvez tivesse sido demasiado ridícula e nem tivesse valido a pena, porque cabia a hipótese de que ele nem me estivesse a ouvir naquele preciso momento.

“O amor já não é o que era” – pensei baixinho quando me sentei na secretária.

“Sou tão estúpida”.

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O dia correu normalmente, como todos os outros dias. Havia pessoas muito ansiosas que andavam demasiado agitadas, de um lado para o outro telefonando a personagens públicas, caras conhecidas ou não tão conhecidas que tinham nas mãos informações bombásticas para a elaboração de ótimas entrevistas, crônicas, editoriais, artigos de opinião, noticias e reportagens que muitas vezes nem eram aceites pelos “grandes”, ou como se costuma dizer “os lá de cima”, que controlam o que deve ou não sair publicado.

Todos desejavam freneticamente encontrar a informação para a escrita do melhor artigo do ano e assim ganhar o reconhecimento e a inveja de todos os companheiros. O drama, a violência e a criminalidade converteram-se em tópicos demasiado banais para a agência. Pediam-nos algo novo, especial, chocante, verdadeiro e que chegasse à alma de qualquer leitor.

Era sempre assim. Aquele individualismo e aquela desconfiança sentiam-se no ar continuamente… Todos queriam ser os melhores.

Mas, naquele dia, algo em particular me preocupava. Por instantes, ficava em branco e perdia-me por completo naquilo em que devia estar concentrada. Parava para pensar nele, no homem da minha vida. O que era realmente assustador era que nunca me tinha acontecido tal coisa, ainda por cima quando estava a trabalhar. Nada me tirava a concentração ou me afetava no trabalho que proviesse de emoções ou preocupações exteriores.

E assim passei o dia. O trabalho passou-me ao lado e todo aquele caos rotineiro e constante, capaz de dar cabo da saúde mental de qualquer um, também.

Tinha chegado a hora de voltar para casa.

Ao entrar em casa estranhei o fato de ele ter chegado mais cedo, de estar todo bem-vestido como se fosse sair. Disse-lhe “olá” dei-lhe um beijo e não perguntei mais nada. Talvez tivesse combinado uma saída com os amigos, ou tivesse uma reunião de negócios..pensei até que fosse sair com alguma secretária ordinária que havia lá na empresa dele.

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Dizia-se que eram todas “boazonas” e que o chefe ia buscá-las às agencias de modelos, sobretudo, para se passarem por empresárias em reuniões importantes e, dessa forma, poderem fechar “negócios” mais facilmente. Na verdade eu nunca tinha presenciado nada, nem recebi jamais provas disso. Podia até tratar-se de um mero boatozito criado na cabeça de qualquer outra esposa ou namorada insegura. Tinha um brilhozinho nos olhos e um sorriso quase para se soltar que não era normal nele, pelo menos, ultimamente.

Comecei a descascar batatas para fazer o jantar e sentia-me irritada pelo que tinha feito aquela manhã. A lágrimazinha no canto do olho era inevitável, pois pensava que não tinha valido a pena aquele ato de coragem. O silêncio instalado em casa perturbava-me e as milhares de perguntas apoderavam-se de mim. Doía-me a cabeça de tanto pensar. Mas, de repente voltou-se para mim a sorrir e disse:

 “Hoje vamos jantar fora”.

Respondi-lhe que estava demasiado cansada e que não tinha vontade. Ele continuou a sorrir, abraçou-me e disse-me ao ouvido: “Eu também”.

 Afinal parece que valeu a pena.

 Aliás, desde aquele dia penso que sempre vale a pena.