Por volta das sete e meia da manhã, de caminho para o trabalho, o meu Volkswagen polo que tanta viagens fez começou a engasgar-se na horrorosa subida da Calçada de Carriche em direção a Lisboa. Rezava e pedia a todos os santinhos que me ouvissem naquele momento que ele não morresse em plena subida pois se não me deixasse ficar mal iria compensá-lo com uma verdadeira ida ao mecânico. Baixei o volume da rádio, acelerei a fundo e….ele andou. Graças ao seu grande motor de ’96 e a todos os santinhos que me ouviram naquela manhã. Não era o melhor dia para que o carro sofresse uma avaria.
Depois de sair de casa, sem me despedir dele, ouvia a M80. Era tudo uma espécie de rotina que se cumpria quase automaticamente, sem qualquer esforço. Como sempre, havia trânsito que nunca mais acabava e, mais uma vez, iria chegar tarde ao trabalho.
Foi então que passou na rádio aquela música que eu tanto adoro dos Eagles, “Hotel California”. Há anos que não ouvia essa música. Fez-me lembrar da passagem do ano em que nos conhecemos num bar perdido perto da Bica, no meio do caos da multidão. Foi aí quando tudo começou.
A canção tinha sido pedida por um daqueles ouvintes que telefonam de vez em quando para a rádio porque querem fazer uma dedicatória a alguém. Neste caso, era a pessoa que o ouvinte amava muito e que naquele momento ía para o trabalho e de certeza que o estava a ouvir.
“Só a mim é que não me acontecem destas coisas” – pensei cá para comigo.
“Talvez ele nem saiba que estava a dar esta canção quando nos conhecemos”.
Dez para as oito, e continuava parada no trânsito, estava muito atrasada e ao ouvir aquela música só pensava nele. Por volta daquela hora já estaria a tomar o café no sitio do costume para depois também ir trabalhar.
“Com sorte daqui a cinco minutos já está a conduzir e a ouvir a rádio” – pensei.
Foi então que me enchi de coragem, liguei para a rádio e dediquei-lhe a sua canção preferida “I wish you’re here” dos Pink Floyd e, até meio encavacada, disse tudo o que sentia como já não o fazia há imenso tempo.
Por um motivo ou por outro tinha-me distanciado dele. Já nem falávamos sobre como tinha corrido o dia, nem éramos carinhosos um com o outro. Tinha saudades daqueles tempos em que tudo era perfeito. Não tinha a certeza se iria a tempo ou se seria tarde demais. Talvez o problema fosse que ele já não me amava mais.
Cheguei ao trabalho numa espécie de transe, já que depois de fazer aquilo me vieram mil e uma coisas à cabeça. O meu chefe refilava comigo e tudo aquilo me entrava a cem e me saía a duzentos. Não conseguia parar de pensar no que tinha feito. Talvez tivesse sido demasiado ridícula e nem tivesse valido a pena, porque cabia a hipótese de que ele nem me estivesse a ouvir naquele preciso momento.
“O amor já não é o que era” – pensei baixinho quando me sentei na secretária.
“Sou tão estúpida”.
O dia correu normalmente, como todos os outros dias. Havia pessoas muito ansiosas que andavam demasiado agitadas, de um lado para o outro telefonando a personagens públicas, caras conhecidas ou não tão conhecidas que tinham nas mãos informações bombásticas para a elaboração de ótimas entrevistas, crônicas, editoriais, artigos de opinião, noticias e reportagens que muitas vezes nem eram aceites pelos “grandes”, ou como se costuma dizer “os lá de cima”, que controlam o que deve ou não sair publicado.
Todos desejavam freneticamente encontrar a informação para a escrita do melhor artigo do ano e assim ganhar o reconhecimento e a inveja de todos os companheiros. O drama, a violência e a criminalidade converteram-se em tópicos demasiado banais para a agência. Pediam-nos algo novo, especial, chocante, verdadeiro e que chegasse à alma de qualquer leitor.
Era sempre assim. Aquele individualismo e aquela desconfiança sentiam-se no ar continuamente… Todos queriam ser os melhores.
Mas, naquele dia, algo em particular me preocupava. Por instantes, ficava em branco e perdia-me por completo naquilo em que devia estar concentrada. Parava para pensar nele, no homem da minha vida. O que era realmente assustador era que nunca me tinha acontecido tal coisa, ainda por cima quando estava a trabalhar. Nada me tirava a concentração ou me afetava no trabalho que proviesse de emoções ou preocupações exteriores.
E assim passei o dia. O trabalho passou-me ao lado e todo aquele caos rotineiro e constante, capaz de dar cabo da saúde mental de qualquer um, também.
Tinha chegado a hora de voltar para casa.
Ao entrar em casa estranhei o fato de ele ter chegado mais cedo, de estar todo bem-vestido como se fosse sair. Disse-lhe “olá” dei-lhe um beijo e não perguntei mais nada. Talvez tivesse combinado uma saída com os amigos, ou tivesse uma reunião de negócios..pensei até que fosse sair com alguma secretária ordinária que havia lá na empresa dele.
Dizia-se que eram todas “boazonas” e que o chefe ia buscá-las às agencias de modelos, sobretudo, para se passarem por empresárias em reuniões importantes e, dessa forma, poderem fechar “negócios” mais facilmente. Na verdade eu nunca tinha presenciado nada, nem recebi jamais provas disso. Podia até tratar-se de um mero boatozito criado na cabeça de qualquer outra esposa ou namorada insegura. Tinha um brilhozinho nos olhos e um sorriso quase para se soltar que não era normal nele, pelo menos, ultimamente.
Comecei a descascar batatas para fazer o jantar e sentia-me irritada pelo que tinha feito aquela manhã. A lágrimazinha no canto do olho era inevitável, pois pensava que não tinha valido a pena aquele ato de coragem. O silêncio instalado em casa perturbava-me e as milhares de perguntas apoderavam-se de mim. Doía-me a cabeça de tanto pensar. Mas, de repente voltou-se para mim a sorrir e disse:
“Hoje vamos jantar fora”.
Respondi-lhe que estava demasiado cansada e que não tinha vontade. Ele continuou a sorrir, abraçou-me e disse-me ao ouvido: “Eu também”.
Afinal parece que valeu a pena.
Aliás, desde aquele dia penso que sempre vale a pena.