Uma rebelde com causa

Onze e meia da manhã. Os gritos e os berros lá em casa invadiram os seus sonhos trazendo-a de volta à dura realidade, aquela monotonia de todos os dias que lhe consumia a alma aos poucos.

– Levanta-te já sua ordinária inútil!!

Clara tem 16 anos, é alta, magra e uma perfeita aberração da natureza aos olhos da mãe, uma alcoólica perdida desde a morte do seu marido, o seu “mais que tudo”, há seis anos. Quando o pai de Clara faleceu, vítima de um acidente de viação, ela era ainda muito pequenina para se aperceber das mudanças que isso iria produzir na sua vida. Foi um acontecimento que marcou um “antes” e um “depois”, uma espécie de maldição que caíra sobre a sua família que, desde então, nunca mais tivera sorte. Os problemas econômicos, as dívidas, a indiferença e os maus tratos constantes da mãe que sofria uma profunda depressão, intensificaram-se com os anos.

Imagem

Já não aguentava mais. Nomes, insultos, gritos, bofetadas e asneiras. Habituou-se aquela realidade durante seis anos. Não sabia mais nada. Olhava-se ao espelho e via uma rapariga alta, magra, com o cabelo castanho escuro, mais ou menos à altura dos ombros, uma tatuagem no braço feita pela sua melhor amiga e uns olhos cansados. Aqueles olhos cor de mel que se olhavam e não se reconheciam, não conseguiam ver aquela menina inocente e cheia de sonhos que sonhava um dia vir a ser pintora. Apesar do cansaço devido às horas de trabalho em casa e das noitadas feitas a dançar num bar, perto de casa, para poder pagar a renda da casa, não tinha dúvidas de que no fundo era boa pessoa.

Clara contemplava-se, nua à frente do espelho enquanto fumava um cigarro em jejum. Não era nenhuma aberração da natureza.

Imagem

– Já te disse para te levantares sua imbecil! Despacha-te que daqui a nada quero o almoço pronto!

Permanecia tranquila. Não tinha pressa e aqueles gritos entravam-lhe a cem e saiam-lhe a duzentos.  Não sabia o que era ter respeito por alguém. Era assim que tinha sido ensinada. Desde a morte do seu pai que as coisas tinham descambado e Clara converteu-se num espírito livre e rebelde. No entanto e apesar das drogas, do sexo e do álcool terem entrado na sua vida tão depressa, a sua essência era boa assim como as suas intenções. Fugiu muitas vezes daquele inferno, mas, no fundo, voltava sempre porque era incapaz de abandonar a mãe apesar de tudo. Um coração em sofrimento que pensou ter perdido tudo aquilo que lhe restava nesta vida. Clara apenas queria um reconhecimento pelos seus esforços.

Muitas vezes, quando voltava para casa do trabalho, à noite, encontrava a sua mãe estendida no meio do chão da sala. Levava-a em braços, ainda completamente embriagada, e deitava-a na cama. E, naqueles momentos de certa ternura e compaixão, ouvia a palavra “desculpa” da boca de um ser destroçado, acabado e perdido. Aquilo era a única coisa que lhe restava e Clara sabia que, apesar das dificuldades que passou e dos maus tratos que recebeu, nunca iria acabar assim. 

Imagem

1 responses to “Uma rebelde com causa

  1. Alguém segura dela mesma?

Deixe um comentário